Resumo-Este ensaio aborda as relações entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e diferentes esferas sociais a partir de reflexões sobre a vigência de três arboviroses transmitidas pelo Aedes Aegypti: Dengue,Chikungunya e Zika Vírus. O intuito deste texto é mais uma análise do ponto de vista histórico-social do que sobre aspectos biológicos e patológicos relativos à cada uma delas. Os conceitos de Espaço de Experiência e Horizonte de Expectativa, conforme propostos por Reinhart Koselleck, são utilizados para embasar o argumento que defende a importância do SUS no agora e no futuro. Ademais, também apresentamos o conceito de correlação inevitável, por nós proposto como essencial à uma abordagem teórico-metodológica preocupada em investigar objetos da problematização histórica numa perspectiva de rede que os interliga fundamentalmente. Partimos da hipótese de que pensar sobre o SUS, um dos principais alicerces da saúde pública no Brasil, envolve considerar a rede de pessoas e instituições que com ele coexistem. A tríade de arboviroses no espaço de experiência entre 2015 e 2020 se caracteriza como um, dentre os muitos possíveis, exemplos de que a defesa do SUS deve fazer parte do horizonte de expectativa em nome da garantia de um dos principais direitos sociais de que a população brasileira desfruta há algumas décadas: o acesso gratuito à saúde. Palavras-Chave: SUS, correlação inevitável, arboviroses urbanas, saúde pública, Brasil. Abstract-This essay analyzes the links between the Sistema Único de Saúde (SUS) and the different social scopes, from reflections about the presence of three arboviruses transmitted by Aedes Aegypti: Dengue, Chikungunya and Zika. This text is more social history approach than an analysis of specific biological and pathological aspects related to each of these diseases. The concepts of Space of Experience and Horizon of Expectation, as proposedby Reinhart Koselleck, are used to support the argument that defends the importance of SUS in recently and in the future. Furthermore, we also present the concept of Inevitable Correlation, proposed by us as essential to a theoretical-methodological approach concerned with investigating objects of historical problematization in a network perspective that fundamentally interconnects them. We start from the hypothesis that thinking about SUS, one of the main foundations of public health in Brazil, involves considering the I. # Ponto de Partida o dia 27 de outubro de 2020 foi publicado, no Diário Oficial da União do Brasil, o texto do Decreto n. 10.530, de 26 de outubro de 2020, que versava sobre a "modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios", a partir da autorização de estudos que possibilitassem a participação da iniciativa privada na administração destes órgãos da saúde pública. Noutras palavras, o dispositivo legislativo abria margem para a privatização da gestão das Unidades Básicas de Saúde (UBSs), por vezes popularmente chamadas de postos de saúde. Estes estabelecimentos são responsáveis pelo atendimento gratuito a problemas que não necessariamente precisam ser resolvidos no atendimento emergencial dos hospitais. As UBSs executam, ainda, o serviço de encaminhamento para tratamento especializado em nosocômios. Assim sendo, colaboram ao combate à superlotação dos hospitais públicos -que é um grave problema do sistema de saúde pública brasileiro atual-, e ainda fornecem gratuitamente atendimentos imediatos, como a distribuição de remédios e preservativos, aplicação de vacinas, odontologia, primeiros socorros, orientação preventiva e vários outros à população. O texto do Decreto n. 10.530 circulou em diversos meios de comunicação, sobretudo nos veículos on-line, o que causou debates e grande reação popular e político-partidária contra uma possível privatização do Sistema Único de Saúde (SUS), do qual as Unidades Básicas de Saúde fazem parte e são porta de entrada. Um dos principais argumentos propagados N era o de que a parceria com iniciativas privadas na administração das UBSs abriria caminhos para que outras competências do Sistema Único fossem privatizadas, o que ameaçaria o acesso gratuito à saúde, garantido pela Constituição Federal de 1988. As resistências resultaram no Decreto n. 10.533, de 28 de outubro de 2020, que revogou aquele publicado dois dias antes. Ainda que em âmbito oficial os dispositivos do decreto de 26 de outubro tenham sido suspensos junto à sua revogação, os debates sobre a privatização perduram nas diversas esferas sociais e políticas. O Decreto 10.530 e sua rápida supressão levantaram discussões acerca do direito a um sistema único e público de saúde. Estas diretamente relacionadas a outros motes das esferas sociais, culturais, econômicas e políticas da sociedade brasileira e da história da saúde pública do país até aqui. Neste ensaio, que se posiciona em defesa do SUS, abordaremos uma, dentre muitas, das questões que conectam saúde pública a várias outras facetas do funcionamento social, a partir da relação entre o Sistema Único de Saúde e três das mais preocupantes doenças transmitidas pelo Aedes Aegypti -Dengue, Zika e Chikungunya. Mais do que uma análise detalhada sobre os prejuízos e definições estritamente biológicas sobre estas moléstias, trata-se de considerações do ponto de vista da história social, preocupada em compreender conexões, diálogos e conflitos envolvidos nas ações e convivências humanas ao longo do tempo. Como fundamentos teóricos-metodológicos de nosso texto, elegemos três conceitos principais. Os dois primeiros são os de espaço de experiência e horizonte de expectativa, legados de Reinhart Koselleck (2006). Visto que o espaço de experiência se relaciona com um tipo de passado atual, onde ocorrem constantes atualizações presentes de experiências vividas, evocamos esta categoria para pensar nos problemas enfrentados pela saúde pública, causados pela tríade de enfermidades aqui analisada, com ênfase nas relações entre SUS, população e Estado. Trata-se de ponderar sobre quais sentidos o referido sistema tem adquirido na experiência social com a saúde como bem público de acesso gratuito. Como aponta Koselleck (2006), o conceito de espaço de experiência aparece como indissociável da noção de horizonte de expectativa. Esta se refere a possibilidades e intenções ulteriores, ao que ainda não foi vivenciado, portanto não se encontra no espaço de experiência, mas neste se embasa para projeções futuras possíveis. Aqui utilizamos este conceito para evidenciar, a partir do espaço de experiência com a saúde pública no Brasil entre 2015 e 2020, a coerência de argumentos que alocam o SUS como necessário a um horizonte de expectativa que preconiza uma satisfatória situação de saúde pública no país. Por fim, apresentaremos o conceito de correlação inevitável, por nós proposto como noção que trata de entender que a escolha de uma esfera de problematização histórica implica, obrigatoriamente, a consideração de outras esferas com as quais o objeto central da problematização mencionada divide espaço. Logo veremos que investigar sobre o SUS entre 2015-2020 envolve, fundamentalmente, examinar aspectos da sociedade onde o mesmo está inserido. Com base nos objetivos esclarecidos acima, este ensaio está dividido em três tópicos principais. O primeiro faz um histórico do SUS a partir de seus marcos legais e contextualiza sua ascensão, bem como elucida limites das legislações que o regem desde sua criação até os dias atuais. O segundo expõe dados sobre as arboviroses no intuito de refletir sobre sua presença e impactos que elas ocasionam à saúde pública, para evidenciar a necessidade do SUS ao funcionamento social, bem como pensar as moléstias transmitidas pelo Aedes Aegypti como desafio e elo entre saúde, sociedade e Estado. Na terceira parte do texto, prosseguimos com a análise da correlação inevitável entre SUS, sociedade e Estado,com reflexões que a exemplificam. Nas considerações finais, além de conclusões sobre a presença da tríade do mosquito, breves ponderações sobre a atual pandemia de COVID-19 enfrentada pelo Sistema Único de Saúde, Estado e população, também são lançadas. # a) Sistema Único de Saúde: breve histórico e problematização A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao Nosso objetivo central pode ser definido pela pergunta: Como a tríade de arboviroses transmitidas pelo Aedes Aegypti nos ajuda a pensar o SUS e a saúde pública no Brasil? Em torno desta problematização, adotamos um caminho metodológico de investigação de variadas fontes escritas, a exemplo de marcos legislativos e boletins da saúde pública do Ministério da Saúde, com vistas a verificar o panorama que esses documentos nos mostram acerca do tema, mas também para refletir brevemente sobre limites inerentes ao trabalho histórico com estes documentos, que são proposital e seletivamente pensados e construídos por sujeitos em condições de produção específicas. Trata-se do cuidado metodológico com o trabalho de fontes escritas, que implica avaliar que junto à produção de informações ocorre a produção de silêncios. Quanto ao recorte temporal, falamos dos anos de 2015-2020, que correspondem aproximadamente a ascensão do grande surto de Zika Vírus, considerado situação de emergência nacional de saúde pública no Brasil, até o ano de lançamento dos dois decretos sobre a possível privatização das UBSs, ano em que também ocorre o início da grave pandemia de Coronavírus SARS-CoV-2 como mais um desafio ao SUS. acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (CF, 1988, art.196) O artigo faz parte da Carta Magna que define direitos e deveres garantidos da sociedade brasileira. Ele e os demais pontos da seção de saúde da Constituição Federal Brasileira de 1988 consolidam o acesso gratuito à saúde como dever do Estado e direito da população. Também apresentam a ideia de um sistema único de saúde como principal garantidor do referido direito. A previsão desse tipo de sistema na Constituição resulta de uma série de fatores sociais antecedentes. Jaime Bellido et al. (2018), autores com os quais corroboramos, apontam como importante para contextualização o período entre a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, e a Reforma Sanitária, a partir de 1970. Com a ascensão do INPS, a configuração sistemática de acesso à saúde voltava-se à centralização financeira e administrativa. A concentração de recursos na previdência social, conforme apontam os autores (BELLIDO et al.,2018(BELLIDO et al., :1752)), formulava um sistema de saúde focado em fornecer serviços médicos como parte da previdência social aos trabalhadores por ela assegurados.Privilegiava-se o serviço de saúde privado, a partir da existência de um acordo que isentava empresas privadas que garantissem esses serviços de saúde aos seus funcionários do imposto de contribuição à previdência. É importante perceber que neste momento no mínimo dois tipos de convênio ocorriam. O primeiro entre o Governo Federal e as empresas. Se estas garantissem os serviços médicos aos seus funcionários, ajudando o Estado na efetivação da ideia de previdência social, estariam livres de pagar impostos de contribuição à previdência. Para o segundo, entre os empregadores e o setor privado de saúde conveniado, a parceria era benéfica para que os primeiros garantissem sua isenção de impostos e o último pudesse ganhar clientela e visibilidade. A década de 1970 marca o surgimento do Movimento Sanitário (ou Reforma Sanitária), que propagava a ideia de que o sistema de saúde deveria ser reformado com base numa nova perspectiva, que não mais preconizasse o lado puramente biológico dos problemas de saúde, mas considerasse sua faceta histórica e sociocultural (IBIDEM). Na perspectiva reformista, o Estado ganharia papel mais central e direto na garantia de acesso à saúde, como parte de um processo maior e mais democrático de redução da desigualdade social pela ótica dos serviços de saúde como necessidade pública. Com o pós-ditadura civil militar, o cenário de esforços movido pelo ideal de democratização tem fundamental expressão na Constituição Federal de 1988. Parte das demandas do Movimento Sanitário é atendida pela presença da saúde pública de acesso gratuito como direito assistido pela Carta Magna. Com isto, o Estado assume a responsabilidade dos serviços de saúde gratuitos para além do Ministério da Previdência Social. É importante destacar que a ascensão de um sistema único de saúde não desmonta a saúde privada, mas com ela divide espaço, muitas vezes firmando acordos, conforme prevê o parágrafo 1º, do art. 199 da Constituição de 1988, que dispõe que "As instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste (...)". Além da Carta Magna de 1988, dois dispositivos legais são importantes para pensar sobre o histórico de criação do SUS. São eles: as Leis n. 8.080, de 19 de setembro de 1990 e n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. A primeira versa sobre "as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências". Esta regula as ações de saúde em todo o território nacional, definindo objetivos e atribuições estaduais, municipais e distritais para garantia das saúdes física e mental, princípios do SUS, suas diretrizes e política de gestão, assistência e funcionamento e, além disso, define outras disposições, a exemplo de vigilância sanitária e epidemiológica, saúde do trabalhador, meio ambiente, pesquisas sobre saúde e tecnologia, entre outros. A Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990 dispõe"sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências". Grosso modo, esta legislação regula a hierarquia de cargos e órgãos envolvidos na administração do SUS, dispondo, também, sobre deveres de cada um para obtenção de recursos governamentais para fomento da saúde pública. Outros dispositivos legais, inclusive mais atuais, poderiam ser citados, a exemplo da Lei n. 12.845 de 1º de agosto de 2013, que determina que os hospitais públicos devem fornecer atendimento com todos os serviços necessários às vítimas de violência sexual, ou a Lei n. 13.427 de 30 de março de 2017, que altera a Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, para incluir "o princípio da organização de atendimento público específico e especializado para mulheres e vítimas de violência doméstica em geral". Contudo, ainda que as referidas leis evidenciem que o SUS acompanha as necessidades e transformações sociais ao longo do tempo, aqui buscamos apenas apresentar alguns dispositivos fundamentais para refletir sobre seu histórico de criação. Mais do que apenas apontar os marcos legais da institucionalização do Sistema, devemos problematizá-los, com vistas a compreender ideias como a de saúde pública e Sistema Único de Saúde como objetos históricos, permeados por negociações, falhas e conflitos ao longo do tempo. Propomos algumas considerações principais para pensar o SUS e suas legislações reguladoras desde sua criação até aos dias atuais. A primeira é que ele não surge do nada. Sua criação faz parte de um processo gradual de significações e ressignificações da ideia de saúde e do papel do Estado como provedor do bem estar social. Sua fundação, com a prerrogativa central de garantia de acesso público aos serviços de saúde, faz parte de um movimento maior que ocorria no Brasil, recém saído de um período ditatorial e que buscava a redemocratização. Parte dos esforços em nome deste ideal envolvia a redução das desigualdades sociais. O Sistema Único de Saúde surge no sentido de considerar essas desigualdades também no campo da Do ponto de vista da teoria da história, aqui podemos evocar o conceito de espaço de experiência, com a consideração do SUS como parte da demanda social pela redemocratização da sociedade de finais da década de 1980 e início de 1990. Ademais, podemos considerar os marcos legislativos que o regulam como parte do horizonte de expectativa para seu funcionamento -o texto da Constituição previa como o SUS deveria funcionar, mas o funcionamento de fato ainda não era parte do espaço de experiência quando o texto constitucional foi redigido. É importante ressaltar que a ideia de horizonte de expectativa não é algo imutável e uno. Existem problemas presentes ao se pensar na existência e atuação do SUS, como desvios de planejamento na aplicação prática e limites das leis. A ascensão de um Sistema Único de Saúde e a garantia de acesso gratuito aos serviços oferecidos não ocorrem de forma imediata, completamente eficaz e homogênea. O SUS envolve uma rede de pessoas e órgãos, conflitos e acordos. A administração da saúde pública em todo o território nacional abarca diferentes instâncias governamentais para tratar dos hospitais e demais aparatos do Sistema em âmbitos regionais, distritais, estaduais e federais. No âmbito nacional/federal o Ministério da Saúde é o órgão gestor, no estadual e no municipal, as secretarias de saúde correspondentes. Problemas de gestão, corrupção, insuficiência, burocracia e outros são esperados nesse tipo de serviço abrangente que implica necessariamente, um comando cooperativo. Ademais, os diferentes perfis populacionais de cada região ou estado atendido pelo SUS varia. Esta variação é, por vezes, responsável pela alteração de planos orçamentários nem sempre atendidos, ocasionando a escassez de recursos materiais e humanos. A superlotação dos hospitais públicos, que é um problema há alguns anos no Brasil, evidencia a assertiva. A tarefa de pensar os limites do SUS não se restringe apenas ao escopo da falta de recursos. Cabenos refletir, de igual modo, sobre a existência da iniciativa privada e outros elementos. A garantia de acesso gratuito aos serviços de saúde não significa, na prática, que todas as pessoas o procurem. Muitos empregadores optam por ofertar planos de saúde como benefício trabalhista. Para muitas empresas é benéfico contratar planos de saúde coletivos para seus funcionários, seja pela atratividade que o item oferece ao cargo e consequente bom status da empresa, seja pela isenção de impostos ou por outras razões. Uma parcela social, apesar do direito, não desfruta do acesso público à saúde por opção, ainda que para alguns motivos específicos desta escolha este número seja pequeno ao longo dos anos: para 2019, por exemplo, três décadas após a implementação do SUS, dados levantados para a pesquisa nacional de saúde para grandes regiões e unidades da federação no Brasil revelavam que apenas 28,5% da população brasileira tinha plano de saúde e/odontológico (IBGE RJ, 2020:29). Outra causa da escolha de não optar pelo atendimento no Sistema envolve as pessoas que escolhem práticas de cura alternativas (muitos de nós optamos por chás, pela consulta ao farmacêutico ou mesmo por aguardar a ação do tempo ao em vez de procurar um estabelecimento de saúde, não é mesmo?!). Outro elemento fundamental a se considerar é que a garantia de acesso gratuito por um sistema único de saúde não faz com que a saúde chegue a todos. Relatórios do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONASS) e outros veículos de informação apontam a superlotação dos hospitais, muitas vezes causadas pela dificuldade de informação sobre a possibilidade de atendimento de problemas mais simples nas Unidades Básicas de Saúde ou mesmo pela ausência de UBSs, hospitais e recursos em algumas localidades. A sobrecarga dos nosocômios públicos exerce um tipo de efeito dominó que ocasiona a escassez de profissionais, remédios, infraestrutura e outros. A insuficiência de apoio financeiro e logístico por parte do Governo Federal ao longo da história do SUS também deve ser levada em conta, pois é em grande parte responsável pela inexistência de hospitais e unidades de saúde em várias regiões. A ascensão e o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde implicam uma rede de pessoas, de órgãos, de instâncias, leis e outros. As reflexões expostas até aqui podem ser analisadas sobre o conceito de correlação inevitável, visto que é impossível pensar a criação e o desenvolvimento do Sistema Único de forma isolada. O acesso gratuito à saúde envolve legislações, diversos sujeitos sociais, instâncias de governo, instituições científicas, população e outras esferas que tornam saúde pública algo heterogêneo, saúde pública. Como afirmam Jaime Bellido et # c) As arboviroses para pensar o SUS e o conceito de correlação inevitável É fundamental destacar que a frente de controle das arboviroses está majoritariamente sob alçada do Sistema Único de Saúde. As clínicas particulares também atendem pacientes infectados, porém a maior parte da população brasileira e, por conseguinte dos infectados, é atendida pelo SUS, cujos órgãos gestores são também responsáveis pelas campanhas de comunicação, prevenção e combate ao mosquito vetor. Evocando o conceito de correlação inevitável, os dados expostos sobre a tríade exigem que os relacionemos a outros aspectos do funcionamento social. Nesse sentido, ainda que um recorte regional específico não seja nosso escopo neste texto, nos cabe esclarecer que diferentes regiões ocupam o ápice da quantia de casos nos diferentes períodos analisados. A título de exemplo, vejamos as estatísticas da Dengue. A região Sudeste, mais populosa do Brasil, registrou o maior número de casos prováveis em 2016. Como dissemos há pouco, o Aedes Aegypti precisa de concentração humana para se estabelecer. Uma conclusão imediata e pouco cuidadosa pode nos fazer acreditar que a numerosa população de humanos é o principal fator responsável pela liderança nas estatísticas. Contudo, a propagação da referida arbovirose obedece a outros critérios de espalhamento, como a maior presença de recipientes e ambientes com água parada, suja ou limpa. Ainda que locais mais populosos tendam a produzir mais lixo e outras condições favoráveis à proliferação do mosquito, não podemos eleger o volume populacional, de forma isolada, como único motivo das ocorrências. Regiões como Nordeste e Centro-Oeste, menos populosas que a Sudeste, apresentaram expressivo número de casos, com ênfase no ano de 2017, onde manifestaram mais casos prováveis do que a região mais populosa(BE. n. 59/vol. 49 MS, 2018:7). As relações internacionais e culturais são outro campo indispensável para pensar o impacto das arboviroses e a questão da saúde pública como correlacionada a todo funcionamento social. Exemplo desta afirmação pode ser encontrado no ano de 2014, em que o Brasil foi sede de um importante evento esportivo mundial, a Copa do Mundo de Futebol. Neste ano, a Dengue já se caracterizava como algo a ser cuidado pelas autoridades, visto que um país doente não era a imagem desejada em um momento onde as atenções estavam excepcionalmente mais voltadas às terras brasileiras -sobretudo em termos de cobertura televisa e visitação de turistas estrangeiros. O ensino, a pesquisa e o próprio saber médico também fazem parte da correlação, porque é no âmbito das universidades e demais instituições de pesquisas que surgem descobertas, formulações de tratamentos e/ou táticas de combate e outras ações fundamentais em nome da saúde coletiva. Além de importante na vigilância e tratamento das doenças, o saber médico científico é diretamente afetado pelo comportamento e consequências das arboviroses. A ausência de vacina, a dificuldade de exterminar o mosquito vetor e outros empecilhos se caracterizam como desafios à medicina e à saúde pública. No caso da tríade aqui preconizada, o problema se torna ainda maior, uma vez que boa parte dos sintomas é comum às três infecções, ocasionando a dificuldade de diagnóstico. As pessoas assintomáticas ou as que por diferentes razões não procuram atendimento especializado são outro agravante às estatísticas e planos de estratégias. Devemos citar, ainda, a situação social das diferentes regiões afetadas. A falta de saneamento, nutrição e orientação higiênica representam a realidade de vários grupos sociais, tornando mais grave o panorama da existência de criadouros do Aedes Aegypti. Tomando novamente a Dengue como exemplo, Shepard et al. (2011( apud TEICH et al., 2017:268) :268) definem que "o custo associado ao manejo da dengue no Brasil é considerado o maior das Américas, correspondendo a 42% dos gastos totais relacionados à doença no continente". Os gastos previstos em leis orçamentárias anuais para a saúde 9 No início deste ensaio, mencionamos um decreto e sua revogação acerca de portas de entrada para futura privatização do Sistema Único de Boa dos debates, principalmente os veiculados em canais virtuais como as redes sociais, enfatizavam a importância do SUS. Tema recorrente nessas discussões era o de que as responsabilidades do sistema ultrapassavam o atendimento às doenças e incluíam, também, ações de prevenção, vigilância sanitária e uma série de outras necessidades da convivência populacional (de 2015 a 2020) mencionam como principais subáreas: assistência hospitalar e ambulatorial, atenção básica, suporte profilático e terapêutico, administração geral, vigilância epidemiológica e "outros". Nos cabe destacar que muitas vezes os recursos previamente definidos necessitam de crédito suplementar, sobretudo na ocorrência de epidemias, e por vezes são insuficientes quando distribuídos entre os estados, municípios e Distrito Federal. O aspecto econômico do impacto da tríade deve considerar, juntamente, os prejuízos às empresas, a partir da impossibilidade de realização do trabalho que as arboviroses ocasionam em funcionários infectados, bem como os malefícios a diversos ramos comerciais, afetados pela ausência temporária de clientes debilitados. 10 Com base nas práticas de enfrentamento e manejo das arboviroses, nos juntamos a esforços de conscientização e afirmamos que a operacionalização de um SUS ultrapassa o atendimento hospitalar. Ele está inevitavelmente correlacionado às ações dos órgãos de administração da saúde pública no Brasil. Ã?"rgãos gestores,com ênfase no Ministério da Saúde, mantém parcerias para campanhas de prevenção, . 9 Cifras detalhadas sobre os gastos governamentais com as arboviroses para cada ano podem ser encontradas em boletins da transparência pública disponibilizados por órgãos governamentais da saúde. 10 É importante informar que considerável parcela da sociedade brasileira desconhece todas as atribuições do SUS, bem como as legislações que o regem. como a manutenção de agentes comunitários de saúde para orientação à população e feitura de estatísticas sobre a presença de mosquitos ou larvas, a circulação de propagandas na TV aberta, a disponibilização de comitês e ouvidorias de comunicação com a sociedade e outras. Todas custam dinheiro, que vem de diferentes fontes de receita (como a arrecadação de impostos pagos pela população,inclusos no preço de produtos e serviços como IPVA 11 Ao consultar portais virtuais como o Sistema de Cadastro e Consulta de Legislações do SUS, disponíveis na internet para consulta aberta, é possível encontrar principais portarias, por vezes igualmente e IPTU, da contribuição previdenciária arrecadada pelo âmbito federal, etc.,). É pensando em ações que evitem a sobrecarga e permitam a manutenção do SUS que as atividades de prevenção e combate ao Aedes Aegypt ocorrem. A maioria das unidades básicas de saúde e hospitais brasileiros, por exemplo, possuem profissionais e equipamentos preparados para identificar possíveis casos de infecção pelo mosquito vetor, mesmo que dificuldades em diagnosticar a presença de uma arbovirose ou mesmo em distinguir qual dos três arbovírus afetam um paciente ainda apareça algumas vezes. Essa preparação foi possível graças a mobilização orçamentária e comunicativa de instâncias públicas, a exemplo da Universidade Aberta do SUS, criada em 2010 pelo Ministério da Saúde, que moveram esforços em nome da informação, prevenção e combate ao vetor, ofertando cursos de manejo para profissionais da saúde, sendo alguns também abertos à comunidade. Esta e todas as demais atitudes envolvem planejamento financeiro. Um dos desafios enfrentados pelos órgãos gestores do SUS é o de mantê-lo financeiramente. A já mencionada escassez de profissionais e equipamentos suficientes, bem como sucateamento ou ausência de unidades de saúde em certas localidades, experencia um espaço que demonstra que é preciso uma reformulação orçamentária para melhorias do sistema público de saúde. A ideia de prevenção, que deve ocorrer em rede, sobretudo no caso das arboviroses que são transmitidas por um mosquito que se locomove e se reproduz em diversas habitações humanas, é fundamental para compreendermos a valorização da saúde como pauta imprescindível para a boa imagem de um governo, para o bom comércio, para a operacionalização de direitos sociais, em resumo para o funcionamento social desejado. A ocorrência de arboviroses evidencia, também, outras questões, a exemplo de disparidades regionais em termos de saneamento básico e atendimento hospitalar gratuito disponível. publicadas no Diário Oficial da União, acerca de orçamentos e outras instruções do Governo Federal sobre o Sistema. É importante destacar que, do ponto de vista da metodologia da história, deve-se pensar nas possibilidades, mas também nos limites de aplicação dos dispositivos legais. Exemplo da disparidade entre textos de lei e projetos de prevenção e sua aplicação prática encontra-se na falta de saneamento em algumas regiões, onde acumula-se lixo e recipientes com água parada. Por vezes os planejamentos de prevenção não alcançam essas localidades, por diferentes motivos-ausência de orientação ou descaso da população para o combate aos criadouros do mosquito, negligência dos governos estadual, municipal ou federal, etc. A distribuição habitual de recursos financeiros para a vigilância em saúde se dá por algumas definições principais, a saber, as portarias anuais que indicam o Piso Fixo de Vigilância em Saúde (PFVS) e o Piso Variável de Vigilância em Saúde (PVVS). A verba fixa é contabilizada segundo a situação epidemiológica de cada estado e município. A verba variável é calculada a partir da adesão das unidades da federação a programas de prevenção, vigilância e qualificação de pessoal oferecidos periodicamente pelo Ministério da Saúde. Conforme apontam Vanessa Teich et al. (2017), existem, ainda, assistências financeiras complementares e casos de repasses mensais "para o fortalecimento do combate a endemias". Se no tópico anterior expusemos boletins referentes ao período de 2015-2020, para evidenciar como as arboviroses aparecem como grave problema social enfrentado pelo SUS todos os anos, neste nos limitaremos a fornecer levantamentos contábeis apenas de alguns períodos. A ideia é demonstrar a rede que o SUS envolve. Vanessa Teich et al. (2017), analisam o impacto econômico das arboviroses no Brasil para o ano de 2016. Além de apontarem valiosas informações, a exemplo de que o ambiente no país é deveras propício para a permanência e disseminação do Aedes Aegypti e que a propagação do vetor tem negativos impactos clínicos e econômicos, os autores fornecem estatísticas de gastos contra as três arboviroses que aqui estudamos. Após uma análise detida dos boletins epidemiológicos e portarias do Governo Federal para a Saúde, apresentam: (...) O investimento para combate ao vetor foi de R$ 1,5 bilhão no Brasil e o custo reportado pelo governo federal para aquisição de inseticidas e larvicidas foi de R$ 78,6 milhões (...) Custos totais com o manejo das arboviroses atingiram impacto de R$ 2,3 bilhões no Brasil, em 2016. Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro apresentaram os maiores custos. (...) Arboviroses geram consideráveis impactos econômico e social ao Brasil. Custos de combate ao vetor, custos médicos diretos e custos indiretos representaram 2% do orçamento previsto para a saúde no País, em 2016. (TEICH et al., 2017:267) Nordeste e Sudeste encabeçaram os maiores custos. O valor de 2% é significativo quando comparado ao orçamento total. Os gastos com larvicidas e inseticidas demonstram mais uma tarefa realizada pelo SUS, reforçando o argumento de que sua alçada ultrapassa o âmbito do atendimento hospitalar. A existência de custos médicos diretos -voltados ao atendimento do paciente infectado -, e dos custos indiretos -os que vão além dos primeiros e estão relacionados a consequências como perda de produtividade, grande número de mortes precoces de pacientes e outros-, corrobora com a ideia de interligação entre orçamento federal, funcionamento social e a saúde pública. Em 2017, a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, lançou a publicação "Vírus Zika no Brasil: a resposta do SUS", que "mostra o esforço de cientistas, servidores públicos, profissionais de saúde e dos profissionais de comunicação em oferecer respostas à sociedade" (MS, 2017). O texto de 137 páginas fornece um histórico da chegada do Zika em formato epidêmico no Brasil e respostas oferecidas pela rede da saúde pública na qual o SUS está inserido. Surpresas, confusões e incertezas sobre diagnósticos, desafios aos profissionais e à população, importância e obstáculos à vigilância e à comunicação, construção de estratégias, parcerias na investigação científica sobre a moléstia, ações de enfrentamento da epidemia e disseminação do conhecimento são alguns dos principais tópicos. Muitos são os pontos que evidenciam a urgência da saúde pública como rede de preocupação coletiva neste documento. Aqui, enfatizaremos um apontamento encontrado na página 22, que afirma que quando os órgãos gestores da saúde decretaram o contexto emergencial da doença-e maior parte desta descoberta fora possível pelo grande número de casos de bebês com microcefalia atendidos em hospitais do SUS-, Dilma Rousseff, presidenta do Brasil na época, "deixou em segundo plano a crise política que o governo vivia (...)". Iniciara-se um contexto de ações de premência para combate à enfermidade, com "mobilização política e institucional de grande envergadura, iniciada em novembro de 2015, quando ainda eram enormes as lacunas de informação e as incertezas sobre a natureza da epidemia" (MS, 2017:22). O histórico deixa claro como a epidemia de Zika era um problema de todossociedade, órgãos de saúde, governo. É indispensável ressaltar a importância do SUS no âmbito de tratamento e combate à epidemia, desde a preparação de profissionais da saúde para manejo dos pacientes infectados, até campanhas de prevenção veiculadas em diversos meios de comunicação. Notemos ainda que sem os registros de casos atendidos pelos estabelecimentos do SUS talvez a identificação da moléstia demorasse mais ainda, piorando o contexto caótico. O acesso público a serviços de saúde propiciados pelo mesmo sistema foram cruciais no atendimento de orientação dos afetados pelo vírus e suas famílias. Já dissemos que o SUS envolve diferentes instâncias gestoras e é uma das principais ferramentas de bem-estar social a partir do acesso gratuito à saúde que é, de igual forma, uma maneira de combater desigualdades sociais. Além dos órgãos gestores, outras parcelas sociais, como profissionais da saúde, população e outras instâncias de governo também fazem parte da rede. Contudo, essa correlação entre várias partes envolvidas, que é inevitável, também tem pontos falhos. A ligação nem sempre é harmoniosa e de negociação. Diversos conflitos permeiam a existência do acesso gratuito à saúde: falta de realização perfeita de convênios entre o SUS e a rede privada quando esta aparece como complementar ao serviço público, disputas político-partidárias que por vezes afetam negativamente o orçamento destinado pelo Governo Federal ao Sistema Único de Saúde, falta de recursos materiais e humanos, más gestões das unidades de saúde, ocorrência de surtos epidêmicos que atingem proporções não esperadas, corrupção e desvio de verbas, entre outros. Os fatores mencionados, que fazem parte do espaço de experiência da rede do qual o SUS faz parte, demonstram um horizonte de expectativa em grande parte incerto. As estatísticas das arboviroses, sobretudo quando somadas a problemas nas ações de prevenção devido a fatores como ausência de saneamento básico, nos fazem crer que o Aedes Aegypti infectado será um inimigo ainda presente por muito tempo, se tornando elemento fundamental das projeções para o horizonte de expectativa da saúde no Brasil. Por esta e por outras razões-as doenças congênitas, as doenças adquiridas, as doenças ascendentes, as doenças inesperadas, as vigilâncias epidemiológicas, sanitárias e outras exigênciasbiológico-sociais, a manutenção e melhoramento do SUS precisa fazer parte tanto do espaço de experiência, quanto do horizonte de expectativa, de forma mais concreta e apoiada pelas instâncias de poder e demais segmentos da sociedade. # d) Alguns versos finais O Sistema Único de Saúde abrange a grade de hospitais públicos, mas também é mais do que ela. Acompanha o movimento vital da população, do ponto de vista bio-patológico, do político, do econômico, do sociocultural. O caso das arboviroses e as respostas do SUS demonstram-no como instrumento indispensável na prevenção e combate às moléstias. Aqui focamos em três, das quatro principais arboviroses urbanas transmitidas pelo Aedes Aegypti, mas devemos recordar que além delas, o SUS é responsável por cuidados a vários outros setores de saúde com acesso gratuito. Um dos pontos chaves de nosso texto evidenciou a fundamentalidade da noção de saúde em rede, com órgãos governamentais, instituições de pesquisa e população inevitavelmente correlacionados na análise da importância do SUS e a ocorrência de arboviroses. No cerne da ideia de saúde em rede está a de prevenção em rede, mais um dos trabalhos do SUS que envolve a cooperação das demais instâncias sociais. Nosso espaço de experiência evidencia algumas insuficiências e incertezas, como as falhas orçamentárias e constantes ameaças, a exemplo do decreto que citamos na primeira parte deste ensaio. Para a concretização da prevenção em rede (das arboviroses e também de outras moléstias), a educação preventiva precisa estar em nosso espaço de experiência para auxiliar num horizonte possível de boas expectativas quanto à saúde pública e manutenção do Sistema Único, pois é uma das maneiras de evitar a proliferação do mosquito e outros agentes causadores de doenças. Outro desafio ao SUS é a convivência com a rede privada. Ao mesmo tempo em que a concomitância dos dois sistemas pode ser benéfica no que tange ao "desafogamento" de leitos e profissionais, os conflitos existem, sobretudo quando tomamos o sistema privado como um mercado que compete com o sistema público. Recentemente a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) do Brasil divulgou a nota técnica n. 49/2020, que versa sobre "orientações para monitoramento de eventos adversos pós-vacinação" em clínicas privadas, reconhecendo que na atual vigência da pandemia de coronavírus SARS-CoV-2, estas teriam papel fundamental no monitoramento dos efeitos da futura vacina, contanto que seguissem as orientações propostas pelo documento. Uma das principais diretrizes se referia a necessidade de notificação dos casos adversos provocados pela vacina. A ANVISA determina padrões tanto para a rede pública, quanto para a privada. A nota técnica da agência de vigilância sanitária é exemplo da necessidade de cooperação entre as duas redes, apontando para a importância do trabalho conjuntoenvio de informações de casos adversos tanto nos hospitais públicos quanto nos particulares-em nome do aumento da eficiência do combate à pandemia que afeta a todos, sobretudo por sua grande capacidade de contágio. Ainda sobre o binômio rede particular e rede pública, a nota técnica foi lançada ao mesmo tempo em que uma enxurrada de debates acontecia nas diferentes mídias. O cerne desses debates, que ensejaram e ensejam questionamentos inevitavelmente correlacionados, que envolvem inclusive as disputas político-partidárias, era a discussão da possibilidade de a rede privada de saúde monopolizar ou ao menos ter prioridade de compra e distribuição de vacinas. Para a parte defensora da ideia, essa seria a solução para entraves burocráticos e financeiros pelos órgãos relacionados à gestão do SUS. O problema da falta de seringas, que também apareceu como parte do desafio contra a COVID-19 no Brasil foi, por vezes, tomado como argumento. Para a parte que vai contra a ideia, o monopólio contribuiria ainda mais ao panorama de desigualdades de acesso à saúde, refletido da situação social daqueles que não têm acesso à saúde privada. Além disso, a vantagem concedida à rede privada ameaçaria o compromisso do Governo do Brasil com a garantia do acesso gratuito à saúde.O atual espaço de experiência da saúde no Brasil evidencia os prejuízos de uma possível vantagem ou monopólio pela rede privada. Ainda que com imensas falhas em implementar vários de seus princípios fundamentais como previstos Carta Magna 1988, o SUS atende a mais de 70% da população (IBGE, 2020), sendo parte desta cifra formada por tratamentos contínuos, incluindo a distribuição gratuita de remédios para doenças crônicas como a diabetes, ofertados a pessoas que não possuem condição de pagar pelos serviços médicos privados. A pandemia de COVID-19 tem se demonstrado grave problema mundial atual. No Brasil, o número de mortes entre a ascensão em 2020 e a primeira semana de janeiro de 2021 ultrapassou a quantia de 200 mil óbitos. Tanto o manejo dos casos, quanto os debates sobre o tratamento têm representado gigantesco desafio à gestão e operacionalização do SUS. A falta de certezas sobre o comportamento do vírus, a inexistência de um tratamento totalmente eficaz comprovado e o potencial de ceifar vidas de pacientes e de profissionais da saúde que trabalham no combate à enfermidade, são algumas das principais facetas deste problema que é, principalmente, do Sistema Único de Saúde. No início de janeiro de 2021, após um longo período de trabalho investigativo colaborativo, o Instituto Butantan anunciou grande percentual de eficácia em casos graves e contra mortes, da vacina Coronavac, desenvolvida por seus pesquisadores em parceria com a empresa farmacêutica chinesa Sinovac. Em seguida, o Ministério da Saúde firmou contrato para comprar doses em larga escala da vacina. Em meados do mesmo mês, Mônica Calazans, uma enfermeira de 54 anos, era a primeira vacinada do país, pelo Sistema Único de Saúde. A disponibilização da vacina à população pelo SUS começou a ocorrer com a vacinação de grupos prioritários (profissionais da saúde, idosos e outros). Prossegue de forma gradual. Outras vacinas têm sido estudadas também.Em meio às dificuldades contextuais, obtivemos, com a Coronavac, uma significativa conquista obtida pelo trabalho dos diversos pesquisadores e pesquisadoras envolvidos. O debate sobre possíveis vacinas merece especial atenção, visto que envolve uma série de outras questões, a exemplo de atitudes xenofóbicas e ideológicas quanto a aceitação da importação de vacinas produzidas em países do oriente. Outro exemplo é encontrado na própria recusa de algumas pessoas quanto às medidas de prevenção e luta contra o Coronavírus. O movimento antivacina, que se popularizou na internet ganhando grande número de adeptos, se caracteriza como grave entrave nas ações de combate, uma vez que, ainda que não se saiba com precisão o comportamento do vírus, sabe-se que ele se propaga com grande facilidade e pessoas infectadas que não seguem protocolos, como o uso de máscaras e isolamento social, podem ser responsáveis por infectar outras que seguem tais regras. Movimentos que se opõem à vacina e são deveras prejudiciais aos esforços do SUS e da população, falta de conhecimento quanto às ações do Sistema, seus órgãos gestores e instituições de pesquisa (sobretudo as universidades, institutos e fundações) a nível nacional e internacional, a propagação de Fake News e a crença indubitável em remédios milagrosos que protegem completamente a imunidade, são alguns outros empecilhos ao melhoramento da saúde pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde na pandemia de COVID-19. Todos esses problemas se agravam pela ocorrência paralela de outras doenças, dentre as quais se incluem a tríade de arboviroses urbanas, com ênfase na Dengue, que entre 2019 e 2020 apresentou expressivo número de casos no Brasil. Como não se sabe ao certo sobre uma grade de sintomas específicos à COVID-19, que não apareçam em outras doenças também, a confusão de diagnósticos pelos sintomas da citada arbovirose e do Corona vírus pode se apresentar como outra dificuldade possível à atuação do SUS. Esperamos que este ensaio, que é uma análise histórica a partir do conceito central de correlação inevitável, e que também aplica a um caso específico duas das principais noções históricas propostas por Reinhart Koselleck (2006), seja, de igual modo, um alerta sobre como nosso espaço de experiência evidencia que precisamos reverter um horizonte de expectativa que aponta para o possível desmonte de um dos principais direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988: o acesso gratuito à saúde pelo SUS. # Fontes e Bibliografia The SUS and the Triad of Urban Arboviruses (2015-2020): Essay about the Inevitable Correlation between The SUS and the Triad of Urban Arboviruses (2015-2020): Essay about the Inevitable Correlation betweenPublic Health and Society Public Health and Societyuma questão indissociável do funcionamento dos investigações sobre ela se fundamentam em ummanifestado epidemicamente no Rio de Janeiro ecampos sociais, culturais, econômicos e políticos. número limitado de casos e surtos.algumas regiões do Nordeste em 1986 (IOC, 2020 2).al. (IBIDEM) o contexto torna "imperativa a democratização do acesso à saúde e a reestruturação do sistema de serviços". Por fim, ressaltamos que apesar de se tratar de um sistema único, o SUS é diverso e oferta variados serviços da saúde profissional-vigilância sanitária/alimentar, clínica médica, clínica cirúrgica, odontologia, pediatria, distribuição de remédios e vacinas, entre outros. Muitas vezes nem todos esses serviços encontram-se disponíveis à toda população-já mencionamos a escassez de recursos, a insuficiência do apoio governamental, a superlotação de hospitais e localidades que não contam com unidades de saúde. Ainda que alguns dos problemas descritos pareçam comuns a diferentes décadas, não se deve perder de vista que transformações ocorrem longo do tempo, obedecendo a questões contextuais diversas. No período de escrita deste ensaio, 2020-2021, por exemplo, vivenciamos uma excepcionalidade que mudou muitos aspectos de nossa relação com o governo e com o SUS: a pandemia de COVID-19. Além das questões aqui já ressaltadas, as epidemias e pandemias que grassam no Brasil, único país que possui um sistema único de saúde, afetam diretamente seu funcionamento. As moléstias em grandes proporções tanto dificultam sua efetividade, como demonstram sua necessidade. É sobre isso que trataremos no tópico a seguir. b) Arboviroses Urbanas entre 2015 e 2020: Dengue, Zika e Chikungunya Dengue, Zika e Chikungunya são arboviroses 1 Ainda que as primeiras descrições científicas urbanas transmitidas pelo Aedes Aegypti, mosquito rajado da espécie Culicidae, que depende da concentração humana em uma localidade para assentar morada. Machos e fêmeas se alimentam de néctar, seiva e outras substâncias que contem açúcar. Contudo, a fêmea precisa da ingestão de sangue para a produção de ovos. Desse modo, a transmissão dos arbovírus ao ser humano é feita pelo espécime feminino. Este pode infectar mais de uma pessoa por lote de ovos, devido a uma característica chamada discordância gonotrófica. Ambientes com água parada, limpa ou suja, são os mais propícios para colocação dos ovos da fêmea e consequente reprodução destes insetos. Neste ensaio preconizamos três arboviroses, mas é válido lembrar que o Aedes Aegypti também pode transmitir a febre amarela urbana. Em 2015, após rumores de uma doença até então incerta que era confundida com rubéola, sarampo, enteovírus, Dengue e outras, um pesquisador da Universidade Federal da Bahia finalmente identificou o vírus Zika, a partir da coleta de material genético de pessoas portadoras de doença exantemática em Camaçari (BA). Em seguida laboratórios diversos, como o da Fundação Oswaldo Cruz, também perceberam e conduziram investigações sobre a circulação deste agente (MS, 2015). Pesquisadores do setor público e privado, nacional e internacional, foram chamados ao Brasil. A própria diretora da Organização Mundial da Saúde à época, Margareth Chan, viera a terras brasileiras, uma vez que a epidemia de Zika era entre ele a Segundo BE. n. 45/volume 48 de 2017, as Para 2015, segundo o Boletim Epidemiológico (BE.) n.44/volume 46 da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, foram registrados 1.587.080 casos prováveis Mas a história da saúde pública brasileira com o mosquito começou antes da popularização da relação para os primeiros anos preocupação internacional. Nascimentos de bebês com , a chamada Febre Chikungunya microcefalia, identificados em mães estrangeiras que (em Angola: Catolotolo). Chikungunya significa "aqueles quando gestantes haviam estado no Brasil, motivou o que se dobram" e faz referência ao aspecto físico dos doentes identificados na primeira epidemia documentada entre 1952 e 1953 na Tanzânia. O vírus responsável pela enfermidade é o CHIKV, da família decreto da ocorrência do vírus como uma situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional pela OMS. O panorama de alerta era agravado pela iminente realização dos Jogos Olímpicos e Para-Olímpicos no país (MS, 2015:23). Ainda que em 2016 a situação de emergência tenha sido suspensa, a doença continuou e continua a ser objeto de atenção de pesquisas, pois ainda há ocorrência no Brasil e em outros países e se trata de um vírus relacionado à ocorrência de outros males, a exemplo da síndrome de Guillain-Barré. Ademais, o pouco tempo desde a confirmação diagnóstica do vírus no Brasil faz com que haja um grande caminho de descobertas científicas pela frente. Quanto às estatísticas, segundo BE. n.45/volume 48 de 2017, em 2016 foram registrados 215.795 possíveis casos até o dia17 de dezembro. O mesmo boletim mensura 17.338 casos prováveis até 16 de dezembro para o ano de 2017. Para 2018, segundo BE. n. 59/volume 49, foram registrados 8.024 casos prováveis de doenças agudas causadas por Zika até 17 de novembro. Até 17 de agosto de 2019, segundo o BE. n.22/volume 50, os números registravam 9.813 casos prováveis. Em junho de 2020, o Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde da Fiocruz Bahia alertava para o retorno de uma epidemia, por conta da Togarividae. Global Journal of Year 2021 Global Journal of Medical Research Volume XXI Issue I Version I ( D D D D ) F Medical Research Volume XXI Issue I Version I ( D D D D ) F descoberta de uma nova linhagem do ZIKV.sobre o mosquito datem da década de 1760, onde foiprimeiramente descrito como Culex Aegypti, asprimeiras ocorrências laboratorialmente documentadasdo vírus da Dengue -doença mais popular transmitidapelo espécime no Brasil-, foram registradas na décadade 1980, surgidas em Roraima em 1981-1982, tendo se© 2021 Global Journals © 2021 Global Journals Fontes:i. Legislação (por ordem cronológica)ii. Relatórios e verbetes Arboviroses são doenças transmitidas por arbovírus, classificação que abrange os vírus transmitidos por artrópodes (insetos e aracnídeos). de Dengue no Brasil até 05 de dezembro4 . Para 2016,até 31 de dezembro, o BE. n.45/volume 48 de 2017 apontava a quantia de 1.483.623 casos prováveis. Para 2017, até16 de dezembro,o mesmo boletim registrava a quantia de 249.056casos prováveis. Para 2018,até 08 de dezembro, o BE. n.59/volume 49, marcava a cifra de 247.393 casos prováveis. Para 2019, diversos jornais 5 2 A matéria de onde extraímos a informação, intitulada "O mosquito Aedes aegypti faz parte da história e vem se espalhando pelo mundo desde o período das colonizações", não menciona data de publicação. Assim sendo, por questões formais, convencionamos o ano em que acessamos o texto como aquele a ser colocado na referência.3 "Os casos prováveis são os casos notificados, excluindo-se os descartados, por diagnóstico laboratorial negativo, com coleta oportuna ou diagnosticados para outras doenças" (MS, BOLETIM EPIDEMIOLÃ?"GICO 45, volume 48:1).4 Os boletins adicionam às estatísticas a variável "semana epidemiológica". Para fins de clareza, aqui optamos por indicar apenas os períodos e as datas finais dos mesmos. O calendário epidemiológico pode ser facilmente consultado em portais virtuais do Ministério da Saúde.5 A exemplo da coluna de Saúde do Estadão, da Folha de São Paulo, do Portal UOL, entre outras.noticiavam o alerta do Ministério da Saúde para o 6 Pesquisadores da Escola de Saúde Pública Mailman, da Universidade de Columbia, e da Fundação Oswaldo Cruz afirmam que o vírus chegou ao Brasil um ano antes do estipulado. Ver: . Acesso em janeiro de 2021.7 Casos são registrados antes de 2015, conforme evidenciam fontes diversas, a exemplo da pesquisa citada em nota de rodapé anterior. Contudo, obedecendo aos critérios de recorte temporal aqui proposto, apontamos os dados a partir de 2015. Ver: < https://portal.fiocruz.br/pergunta/como-ocorre-transmissaodo-virus-zika>. Acesso em janeiro de 2021. IPVA-Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores; IPTU -Imposto Predial e Territorial Urbano. * Plano Nacional de Saúde -Informações sobre domicílio, acesso e utilização dos serviços de saúde, Brasil, grandes regiões e unidades da federação para 2019 Fiocruz Aegypti Dengue ChikungunyaZika Instituto De Geografia E Estatística Ministério da Saúde (MS) 2020. 2015. 2015 44 Monitoramento dos casos de dengue, febre de chikungunya e febre pelo vírus Zika até a Semana Epidemiológica 48 de * Monitoramento dos casos de dengue, febre de chikungunya e febre pelo vírus Zika até a Semana Epidemiológica 35 de 2017 2017 48 Ministério da Saúde * Monitoramento dos casos de dengue, febre de chikungunya e doença aguda pelo vírus Zika até a Semana Epidemiológica 49 de 2018. Ministério da Saúde (MS), dezembro de 2018 59 * Acesso em janeiro de 2021. _______. Boletim Epidemiológico n.22, Monitoramento dos casos de arboviroses urbanas transmitidas pelo Aedes (dengue Semanas Epidemiológicas 1 a 34,2019. Ministério da Saúde (MS) setembro de 2019. Disponível em * Monitoramento dos casos de arboviroses urbanas transmitidas pelo Aedes Aegypti (dengue, chikungunya e zika), semanas epidemiológicas 1 a 38, 2020. Ministério da Saúde (MS) 51 outubro de 2020. Disponível em * Acesso em janeiro de 2021. iv. Notas técnicas ANVISA, BRASIL. Nota técnica n. 49/2020/SEI/FARM/ GGMON/DIRE5/ANVISA "Orientações para monitoramento de eventos adversos pós-vacinação-Clínicas privadas de vacinação Monitoramento dos casos de arboviroses urbanas transmitidas pelo Aedes Aegypti (dengue, chikungunya e zika), semanas epidemiológicas 1 a 50 2020 51 Ministério da Saúde (MS), dezembro de 2020 * ImaBraga Aparecida * Aedes aegypti: histórico do controle no Brasil DeniseValle * Revista Epidemiol Serv Saúde 2007 16 * Vírus Zika no Brasil: a resposta do SUS. Brasília, Ministério da Saúde SecretariaBrasil EMDe Vigilância Saúde 2017 * A crise dos serviços hospitalares de urgências no Brasil: Elementos para uma agenda transformadora em prol dos direitos humanos. Revista Consensus, abril-junho CONASS 2013 * O mosquito Aedes aegypti faz parte da história e vem se espalhando pelo mundo desde o período das colonizações OswaldoInstituto Cruz 2020 * ReinhartFuturoKoselleck Passado Contribuição à semântica dos tempos históricos Rio de Janeiro. Contraponto-Ed. PUC-Rio 2006 * Zika no Brasil: história recente de uma epidemia IllanaLöwy Rio de Janeiro. Editora Fiocruz 2019 * Economic impact of dengue illness in theAmericas Shepard Ds LCoudeville YAHalasa Zambrano B Dayan Gh Am J Trop Med Hyg 2011 * Aedes aegypti e sociedade: o impacto econômico das arboviroses no Brasil VanessaTeich RobertaArinelli Ahham Lucas 2017 * Antunes Dantas de Francisco;Viacava RicardoOliveira CARVALHO Carolina de Campos * JosuéLaguardia * SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Ciência & Saúde Coletiva JaimeBellido Gregório 2018 Rio de Janeiro